Ao defender, em entrevista à RTP, que houve “80 por cento de decisão política” no desfecho do caso conhecido como mensalão, o antigo Presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva reacendeu uma controvérsia cujos ecos chegaram já ao Supremo Tribunal Federal daquele país.
Numa nota de Joaquim Barbosa, presidente do órgão judicial que condenou 25 dos 38 réus no processo do esquema de compra de votos, conclui-se que “o juízo de valor emitido pelo ex-Chefe de Estado não encontra qualquer respaldo na realidade” e demonstra uma “dificuldade em compreender” uma Justiça independente.
“O juízo de valor emitido pelo ex-Chefe de Estado não encontra qualquer respaldo na realidade e revela pura e simplesmente sua dificuldade em compreender o extraordinário papel reservado a um Judiciário independente em uma democracia verdadeiramente digna desse nome”, reagiu o presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil, em comunicado difundido nas últimas horas pela generalidade da imprensa do país. Em causa estão afirmações de Lula da Silva sobre o processo mensalão proferidas na entrevista conduzida pela jornalista da RTP Cristina Esteves e emitida no passado sábado. Sustentava então o antigo Presidente brasileiro que o julgamento teria conhecido um desfecho de pendor essencialmente político. O caso mensalão eclodiu em 2005, durante a Presidência de Lula da Silva, e envolveu figuras próximas do antigo número um do Partido dos Trabalhadores. Incluindo José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil. O esquema de corrupção julgado em Brasília pelo Supremo Tribunal Federal consistia no pagamento de subornos mensais a deputados e dirigentes do PT em troca de votos parlamentares. Com mais de 600 testemunhas, três centenas de volumes com 50 mil páginas, 53 sessões e 38 réus, o julgamento assumiu uma dimensão histórica. No final, o Supremo condenou 25 réus, entre os quais José Dirceu, por corrupção e formação de quadrilha criminosa. “Tem uma coisa que as pessoas precisam compreender: o povo é mais esperto do que algumas pessoas imaginam”, atalhou Lula da Silva, para propugnar que, nas sentenças do Supremo Tribunal Federal, houve “praticamente 80 por cento de decisão política e 20 por cento de decisão jurídica”. “O que eu acho é que não houve mensalão. Agora, eu também não vou ficar discutindo as decisões da Suprema Corte. O que eu acho é que essa história vai ser recontada, é apenas uma questão de tempo”, insistiu Lula, depois de recordar ter indicado para o Supremo Tribunal seis dos 11 ministros (designação brasileira) que julgaram o processo. Para o presidente do Supremo Tribunal Federal, estas palavras de Luiz Inácio Lula da Silva acabaram por minar ainda mais a confiança dos cidadãos brasileiros nas instâncias judiciais. “Lamento profundamente que um ex-Presidente da República tenha escolhido um órgão da imprensa estrangeira para questionar a lisura do trabalho realizado pelos membros da mais alta Corte da Justiça do País. A desqualificação do Supremo Tribunal Federal, pilar essencial da democracia brasileira, é um fato grave que merece o mais veemente repúdio. Essa iniciativa emite um sinal de desesperança para o cidadão comum, já indignado com a corrupção e a impunidade, e acuado pela violência. Os cidadãos brasileiros clamam por justiça”, reprova Joaquim Barbosa. “Um massacre” Na mesma entrevista à estação pública, Lula foi mesmo ao ponto de descrever o processo como “um massacre que visava destruir o PT”. Confrontado com os sucessivos escândalos com epicentro no Partido dos Trabalhadores, o antigo Presidente brasileiro retorquiu: “Não adianta dizer que o Lula pratica qualquer ato ilícito porque o povo me conhece. Eu sou filho de pai e mão analfabetos e digo todo o dia para não ter dúvidas. O único património que minha mãe me deixou foi a conquista de andar de cabeça erguida”. O presidente do Supremo Tribunal Federal contrapõe que o processo decorreu com transparência, dado que réus e Ministério Público tiveram acesso simultâneo aos autos a partir de qualquer região do Brasil. “Os advogados dos réus acompanharam, desde o primeiro dia, todos os passos do andamento do processo e puderam requerer todas as diligências e provas indispensáveis ao exercício do direito de defesa”, acentua o responsável. Joaquim Barbosa sublinha ainda que defesa e acusação tiveram mais de quatro anos para produzir prova. E que foram ouvidas mais de seis centenas de testemunhas e realizadas perícias por diferentes entidades, algumas das quais “situadas na esfera de mando e influência do Presidente da República” – são citados o Banco Central, o Banco do Brasil e a Polícia Federal, além do Tribunal de Contas da União e a própria Câmara dos Deputados.
RPT
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